sexta-feira, março 07, 2008

As duplas trevas

Nós, seres humanos, somos livres. Somos livres, mas não podemos escolher todas as estradas, pontes e mares (e as condições dessas estradas, pontes e mares) pelos quais passamos - e ainda vamos passar - em nossas vidas.
Uma das estradas mais importantes pela quais passamos em nossa existência é o lugar onde nascemos e crescemos. Eu, por exemplo, não escolhi ser brasileiro. Mas que fazer? Tenho que lidar com essa situação; mais do que ter que lidar com ela, sou livre para lidar com ela. Somos livres, pois, para lidar com as circunstâncias que nos são impostas, que nos são dadas.
O teólogo e filósofo cristão São Tomás de Aquino escreveu uma linda prece intitulada Oração para os estudos. Neste pequeno texto ele identifica duas das circunstâncias que nos são impostas tão logo somos concebidos. São elas o pecado e a ignorância.
O pecado é a transgressão de uma norma divina. Isto significa que, ao desobedecer, nós estamos desobedecendo a moral divina; estamos desobedecendo Deus, e não o ser humano.
Não importa se cristão, judeu, muçulmano, budista, ateu...o caro leitor há de convir que nós nascemos distantes da perfeição moral, e na maioria dos casos longe dela permanecemos. Como sempre,existem casos em que o esforço é mínimo;em que a coisa sai naturalmente, instintivamente. Mas existem casos em que o esforço para cumprir os mínimos preceitos morais é esgotante; tão esgotante que a recaída chega a ser quase natural, quase instintiva.
A ignorância é a imperfeição do conhecimento. Quanto a este o caríssimo leitor há e convir mais uma vez: nascidos, somos nós cá e ele lá. E mais uma vez existem casos quase sem esforço e casos forçosos, estafantes.
O pecado e a ignorância...São também circunstâncias impostas a nós. Nascemos sem bem e sem mal, sem verdade e falsidade. Nascemos nas duplas trevas...Na escuridão moral e sapiencial...Nascemos dentro de nossos limites...Dentro dos limites humanos.
Sim! O pecado e a ignorância nos são impostos quando nascemos. Somos, pois, livres para escolher o que fazer dessas circunstâncias: podemos nutri-las, cultivá-las, semeá-las;mas podemos também desidratá-las, podá-las, corrompê-las.
Este é o drama de nossas vidas. Este vem sendo o drama da história humana há milênios.

A metanóia de Eric Clapton

Lembro-me da primeira vez que o vi. Creio eu que já faz quinze anos. Estava ele sentado em um banco, com um violão apoiado em uma das pernas e tinha uma banda às suas costas; estava bem vestido, levava o cabelo um pouco comprido e usava óculos de armação grande. Cantava uma música melódica chamada Tears in Heaven e um tempo depois de ouvi-la fiquei sabendo que ela fora escrita como homenagem a seu filho que morrera ao despencar de um edifício.
Com esses dados formei a seguinte imagem de Eric Clapton: cantor elegante que possui uma voz suave, canta músicas melódicas e que teve uma experiência trágica. Este foi durante muitos anos o – digamos assim – meu Eric Clapton. Ao longo dos anos fiquei sabendo que ele é considerado um dos grandes guitarristas do rock, ao ponto de picharem nos muros de Londres “Clapton is God”. Confesso que saber disso contribuiu para o início do desmanche do “meu Clapton”, afinal nem passava pela minha cabeça que aquela figura plácida cantando Tear in Heaven fosse um ídolo, um ícone da geração sexo, drogas e rock in roll. Hoje, após ler alguns trechos da sua autobiografia, concluo duas coisas intrinsecamente ligadas: a) a primeira impressão é a que fica...somente para pessoas que ficam com a primeira impressão, e b) Nelson Rodrigues tinha razão ao dizer que toda pessoa é uma janela aberta para o infinito.
Toda impressão inicial que assimilei de Eric Clapton foi sendo lentamente reajustada às novas informações que adquiri com o passar do tempo, e a imagem de homem bonzinho e inofensivo foi completamente desmistificada. Clapton foi viciado em heroína, cocaína e álcool. A estabilidade e a paz que ele me passou enquanto cantava Tear in Heaven no acústico MTV simplesmente não existiram durante muito tempo em sua vida. E o que existiu? Segundo o próprio Clapton existiram excessos, porres incalculáveis, vergonhosas apresentações, medonhas composições, gravações abaixo da crítica, atitudes ridiculamente patéticas, tentativas de suicídio e muitas tentativas infrutíferas de contornar tudo aquilo. Por volta dos quarenta anos, Clapton sentia que nada em sua vida fora real; tudo lhe parecia falso. Ele conta no livro que em um dia de desespero ele não agüentou e ajoelho; ajoelhou e suplicou a ajuda de Deus.
Há mais de duas décadas que ele repete essa atitude, que considera de humildade. Há mais de duas décadas que ele está completamente sóbrio. Foi, portanto, sóbrio – e em paz – que vi pela primeira vez Eric Clapton, enquanto ele tocava Tears in Heaven.
A história do cantor e compositor inglês é um exemplo daquilo que em filosofia se chama metanóia, isto é, a visão que o sujeito tem das imperfeições da vida que leva e o vislumbre de novas possibilidades, novos caminhos a seguir que corrigiriam aquelas as tortuosidades enfrentadas.
Para alcançarmos a metanóia, precisamos de algo dificílimo: sermos honestos com nós mesmos. E quem ler a autobiografia de Eric Clapton perceberá uma honestidade realmente prodigiosa.